Impressões de um caipira sobre uma curta viajem ao principal centro cultural e financeiro da América do Sul
O autor, ninguém*
“Quem é você?
- Adivinha se gosta de mim
...
- Quem é você, diga logo...
- ...que eu quero saber o seu jogo
- ...que eu quero morrer no seu bloco...
- ...que eu quero me arder no seu fogo”
São oito horas da manhã dum Sabbath. Dia de Adolfo de Osnabrueck, que se tornou santo, entre outras coisas, pela sua benfazeja caridade e compreensão das necessidades dos pobres e dos doentes. Dia mundial de combate à desertificação e à seca.
O ônibus fretado parte de São José do Rio Pardo rumo a São Paulo. Desnorteado, acordo ao meio dia numa marginal. Feliz por nem ter percebido o trajeto e pela expectativa em assistir a um espetáculo teatral sobre os sertões: a “companhia” do Zé Celso apresenta aos sábados às dezoito horas a peça “A Luta – parte II” no Teatro Oficina. Mas até lá, faltavam três horas e duas opções culturais se apresentavam ao pessoal e a mim.
Como todos os passageiros, desci entre a Pinacoteca do Estado e a Estação da Luz. Na Estação da Luz o “museu da língua portuguesa” apresentava experiências “texto-áudio-visual-tácticas” com excertos de obras consagradas da literatura brasileira e portuguesa. Achei curiosas a idéia e a necessidade de manutenção da língua num museu. Em lugares assim a estreiteza de meu horizonte funda a minha incompreensão. Paciência.
De lá, dirigi-me a Pinacoteca com o propósito de tomar um café com conhaque. Minha companheira, que claramente reprovara esse meu desejo etílico, sugeriu-me chá gelado. Atravessamos a rua. No caminho do Museu da Língua Portuguesa a Pinacoteca do Estado, podia-se comprar de camelôs: DVDs a cinco reau ou refrigerante a dois reau. Optei pelo café espresso e o conhaque a dez reais num estabelecimento legalizado. Nossa! Compraria um dvd, um refri e ainda sobraria uns trocados. Bom, deve-se acreditar nas instituições.
Na pinacoteca, sob o efeito do café, resolvi apreciar os seus jardins e o seu entorno. Afinal, pensei: Cândido Portinari, Anita Malfatti, Victor Brecheret, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti há muito são referências culturais dessa terra abençoada e, assim, a minha escolha pelo exterior poderia mostrar pinturas de cores mais coloridas e de contrastes mais contrastantes. Não foram exatamente essas palavras e esse raciocínio que tive no momento, de qualquer maneira, aqui o arranjo soou razoável.
O jardim ao redor da Pinacoteca do Estado, é um belo jardim! De algum estilo importado da distante, longínqua, afastada e desconvizinha Europa, o jardim reúne, dentro e fora de suas cercas, exemplares da mais requintada, aperfeiçoada e racional formas de organizações econômica, trabalhista, administrativa, e do capital. Pasmem europeus, americanos e japoneses! Segurem vossos queixos homens de pouca fé e muito trabalho. Os nossos jardins serão o futuro da nação e, doravante, do universo! A essa tese eu invocaria aqui como testemunha o fixo olhar-ilhado de Garibaldi não fosse aquele seu eterno contemplar gélido-broze-metalóide da realidade que lhe salta à frente.
Por toda a extensão do agradável jardim, misturadas aos transeuntes, aos casais e as famílias, muitas mulheres propiciam o desenvolvimento de calorosos relacionamentos humanos estabelecidos mediante pagamento de determinado valor previamente acordado entre as partes. Algumas são altas, outras gordas, umas magras, quase todas pretas de uma beleza própria e pobreza absoluta.
Observação fortuita: já houve quem pensasse o prazer em jardins regados a pão e água. Mas hoje em muitas situações, propósitos e jardins diferentes, mercantilizam-se por bem menos um dessemelhante prazer. Bobagem.
A exploração sexual de centenas de mulheres à clara luz do dia e do Estado, sob as sombras das árvores e a merencória percepção dos traços superficiais da aquarela humana, deixou-me extasiado. Tudo ali. Aquele curioso amálgama: encostadas em latas de lixo recicláveis, sentadas em bancos, fundidas às instalações artísticas modernas. Sozinhas, em pares, de um lado ao outro, algumas andando pra lá e para cá, outras bem mais pra lá. Já não têm mais vitrines nem poetas catando as suas poesias entornadas ao chão. Se é que há chão ou poesia no meio de tanta cerca e tanto muro. Sim, há sim. A poética da miséria amarela tão verde que, de azul, agora é branca. E assim, torcemos.
De uma certa perspectiva, e vista no tempo, a nossa sociedade, a nossa saciedade, a nossa sócia cidade – produto de necessidades e desejos alienígenas -, não apenas gestou e comportou formas, caracteres e elementos próprios e alheios. Ora a combiná-los harmonicamente, ora a repeli-los, a nossa civilização sempre em contraponto, em seus encontros e desencontros, desnudou e mascarou magnificamente tais composições, arrumações e aconchegos.
Mulheres, crianças, velhos e desvalidos. Homens-trapo, mal diferençados dos sacos pretos ou azulados. Deitados de metro em metro, de esquina em esquina, em esplêndidos berços de polietileno pigmentado. A cena corriqueira já é parte da nossa revolução urbana, ocidental e cristã. Sem isso seria mesmo estranho. Assim como está, tudo bem. O não-homem, o não-escravo, o não coisa, o homem grátis. Porque nada é, porque estorva, porque agride, porque pede, porque fede. Porque tudo é. Porque está em todo lugar, em todas as direções e arrabaldes. Do lado de lá das cercas e dos muros esses borrões áudio-visual-tácticos povoam e habitam junto aos restos e ao lixo. O lixo produzido por aqueles que puderam consumir qualquer coisa em qualquer lugar; o lixo proveniente de um café, ou de um refri, ou de um dvd, ou de um alucinógeno amarelo ou de um aditivo azul, red ou bull.
Evidentemente que o interior de nosso depósito de quadros público reserva ao visitante paisagens, retratos e representações mais prazerosas aos olhos. O meu olhar hinterlândico, porém, outra cousa mirou, quis ver o que todos viam d-i-a-r-i-a-m-e-n-t-e. Vida longa ao global e embrionário século vinte-e-um-sete-um, filho da moderna civilização promotora da dilatação e extensão dos direitos à todos os gêneros, sem distinção! A mão do leviathan, a égide da espada, a proteção totêmica, o açambarcamento pelos soldados dos exércitos do quasímodo príncipe moderno tornaram a justiça e as regras bem mais amplas, flexíveis, insípidas, inodoras e brancas! Sim brancas! Higiênica e farmacologicamente brancas.
Desvencilho-me de todos os pudores, desfaço-me de toda moral e renuncio a toda idéia de religião. Porque agora, neste exato momento, deveria fazer alguma coisa útil ao combate à seca e à desertificação existente em minha cabeça, em meu imaginário e em minha percepção e entendimento daquilo que chamo de realidade. Mas nada faço e qual a razão? Ora, já passam das dezessete e trinta, vou tomar outro conhaque e ouvir novos protestos antes que a peça comece. Depois eu penso em alguma coisa.
“Mas é carnaval, não me diga mais quem é você.
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar.
Que hoje eu sou da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou.”
- Tem um real?
- Não.
- Cinqüenta centavos?
- Não.
- Um cigarro?
- Não fumo.
– Faz bem! Mas você não tem mesmo um real?
- Não. Vá se fudê, filho da puta! Não enche o saco, porra!
“Seja você quem for, seja o que Deus quiser”
* * *
Quem só ouve não, não pode ser outra coisa que o não, a nulidade do que se afirma, a negação daquilo que se diz ser e é porque acredita ser de tanto ouvir a própria voz a repetir incessantemente a mesma coisa: tu Ès! Ès à minha imagem e semelhança! E vós, os escolhidos, sois o meu povo. Ou não?
Canudos ainda arde e o sertão é o meu quintal.
(citações de Chico Buarque de Holanda)
* Renaldo Mazaro Jr.
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